caminho no pé

Depois de muito tempo, atravessei a soleira da porta do consultório de um dos meus médicos e lá estava ele, olhando-me por cima dos óculos sem dizer nada até eu estender a mão pra cumprimentá-lo. Ele hesitou um pouco, mas depois correspondeu ansioso, lembrando-me, porém, do acordo que tinhamos feito há quase um ano: chegar ao peso adequado pra mim em cinco meses, com exercícios e sem “bolas”. Depois de ler os exames (saúde de bebê mas sem parabéns), veio a bronca no tom baixo, quase hipnótico, que sussura as mazelas do excesso de peso que vira obesidade, que vira doenças, que vira morte e enfim, o golpe de misericórdia: “se não reduzir o peso vou receitar uns comprimidos.”. “Não, eu juro que vou obedecer desta vez.” 

Já tinha trocado a dieta, bastava regular as quantidades e fazer mais exercícios físicos, o que era terrível pra mim, pois não gosto de fazer nada que seja um esforço repetitivo pelo menos até que se tornem um prazer, é claro. Há coisas que acho simplesmente ridículas, ainda que pense nos benefícios, como correr… numa esteira! pra onde se vai numa… esteira? Bicicleta de academia, o mesmo. Localizadas afins com ou sem aparelhos de musculação, idem. Preciso de sentido, ou melhor, enredo: começo, meio e fim. Por isso, há anos dancei, corri nas ruas e em parques, comecei ioga e pilates – que não terminei por indisciplina e tédio. Cada abandono aumentava a minha certeza de que as pessoas normais e legais é que são felizes para sempre.

Então, em favor da minha saúde e do meio ambiente decidi, nos dias em que meu trajeto fosse casa-firma-firma-casa, o que significa pelo menos 3 vezes por semana, ir a pé para o escritório mais próximo de casa e de lá, contar com o transporte interno para ir à base. Voltar também. Idéia fácil.

Circuito de meia hora a passos rápidos, com um trecho de quinze minutos de muvuca não só de carros, mas de pedestres, sem falar em carregar uma bolsa extra para os sapatos/tênis e camisetas/vestidos-saias: execução difícil.

Mas, comecei finalmente, depois de semanas de hesitação e treinos facílimos aos sábados, domingos e feriados pelo bairro que na verdade começaram com recompensas perigosamente deliciosas como bolinhos de chuva feitos com farinha integral, recheados com banana e morangos picadinhos e caramelizados com mel, açúcar mascavo e canela, que evoluiu para uma porção dupla de mangas picadas com amêndoas e morangos flambados em calda de açúcar mascavo, até finalmente subir aos céus da porção de frutas ou cenouras-salsão-pepino suficientes para matar a fome do corpo que em termos de nutrição, não precisa de mais do que isso pra se divertir, convenhamos.

Achei que fosse desistir no meio do caminho, pegar um ônibus ou um táxi, mas voei nas asas dos meus pés, quase corri, prestando atenção aos sons, imagens, movimentos e rostos. Misturar-me à multidão do fim do expediente, desaparecer na noite entre os carros como um pedestre de calçada que atravessa à deriva, aproveitando o engarrafamento. Divertido até.

Nesta manhã, vi um homem trabalhando e fui andando mais devagar pra captar a estória que estava ali. Deu pra ver que, numa troca de ferramentas, entre uma picareta e um martelo, tentava quebrar o chão de concreto. Primeiro, vários golpes com a picareta. Depois,  com o martelo. O engraçado era que mesmo com tudo isso, pouco do concreto se quebrava, talvez rachasse e o martelo servia pra transformar as rachaduras em fendas, e as fendas em lascas de pedras, que levantadas, iam liberando o caminho.

Passei por ele e segui, imaginando: O que será que ele faria? consertaria o encanamento? trocaria o portão? plantaria uma árvore? Não sei.

Um cara colocou a cabeça pra fora do seu carro pra gritar comigo porque apareci subitamente na sua frente e o assustei, não estava atravessando na faixa de pedestres. Ok, pensei, acenando um pedido de desculpas – devia estar me comportando como um motoboy: estava me tornando uma atleta inconsequente e era melhor seguir as regras.

Depois, chegando ao escritório, entrando em ruas mais tranquilas, fui me lembrando dos infelizes desencontros das últimas semanas e dos felizes encontros perdidos. Somos um chão de concreto porque a terra não é fertil, ou a terra não é fertil porque somos um chão de concreto? Marretamos excelentes ideias centenas de vezes até conseguir colocar uma parte delas em prática e não de todo, não pra sempre. Era realmente difícil atravessar as camadas de concreto que criamos sobre quem realmente somos; quiséramos bastasse um toque pra desarmar tudo e a terra fertilizada aparecesse, daí só plantar, regar, esperar e colher. Mas quase nada está pronto assim, é preciso quebrar antes de tratar e fazer todo o resto. Milhares de picaretadas e marteladas podem ser necessárias para chegar a um chão agricultável.

No fim do dia, chegando em casa a pé, depois de passar no mercado e comprar lentilhas para uma sopa, reparei no meu vaso de flores, estavam secas. Lembrei-me que aos quinze anos, pedi a um casal amigo da minha mãe que trouxesse pra mim um jornal e folhas de árvore da Alemanha. Eles me trouxeram um jornal e três pinhas.

Joguei fora as flores, perguntando-me porque fui me lembrar disso agora. Parei um minuto: para aquele fruto futuro, ainda que houvesse muito a trabalhar, já começava a ver rachaduras no chão. E a visão do que viria a ser aquele chão era inspiradora, como foi escrito por Liz Gilbert em Comer, Rezar, Amar:

“Lembro-me de algo que li certa vez, algo em que os zen-budistas acreditam. Eles dizem que um carvalho é criado por duas forças ao mesmo tempo. Evidentemente, há a pinha onde tudo começa, a semente que contém toda a promessa e o potencial em que se transforma na árvore.Todo mundo pode ver isso. Mas são poucos os que conseguem reconhecer que existe outra força em ação aí também – a futura árvore em si, que quer tanto existir que faz a pinha nascer, usando o seu desejo para fazer a semente brotar do nada, guiando a evolução da inexistência à maturidade. Pensando assim, dizem os zen-budistas, é o carvalho que cria a pinha da qual ele próprio nasceu.”

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2 respostas para caminho no pé

  1. Cla Ros Bar disse:

    Lembra do Drummond em A Flor e a Náusea?

    Uma flor nasceu na rua!
    Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
    Uma flor ainda desbotada
    ilude a polícia, rompe o asfalto.
    Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
    garanto que uma flor nasceu.

    Sua cor não se percebe.
    Suas pétalas não se abrem.
    Seu nome não está nos livros.
    É feia. Mas é realmente uma flor.

    Sento no chão da capital do país às cinco horas da tarde
    e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
    Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
    Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
    É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”

    Talvez o homem estivesse abrindo espaço para a flor… A do concreto e a sua (porque não dizer, a nossa?)…
    Fica com Deus!

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