“A audácia da esperança”

Às vezes nos acontece de presenciar um fato qualquer ou receber uma informação que parecem ser, a nós, endereçados exclusivamente. É como quando nos apaixonamos: num instante em que estamos olho no olho com a pessoa amada, parece que nada mais existe em volta, nenhum som; quando damos atenção, zapt – tudo em volta desaparece e nada interfere na captação da mensagem.
 
Foi assim, no sábado de manhã, ao ler no jornal que Samantha Power estaria na Bienal no Livro em SPaulo para falar sobre a biografia que escreveu sobre o diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello, morto num atentado à sede local da ONU em Bagdad com outros 21 colegas. Fui lá pra minha infância, quando eu queria trabalhar na ONU, já que não poderia ser diplomata pois era profissão para homens, passando pela adolescência quando eu queria fotografar como  o Sebastião Salgado e denunciar ao mundo os maus tratos a refugiados e desamparados, e chegando, agora, quando voltei  a me interessar por política em função da candidatura de Barack Obama. Pronto, fiquei com a alma agendada, como se tivesse que levar a sério este compromisso.
 
Tudo o mais que fiz pra cooperar comigo neste fim de semana parecia secundário depois de ler a notícia: cuidar das minhas coisinhas, estudar, comer frutas, tomar sol, acompanhar o parto de uma amiga querida – o bebê é lindo! – , caminhar pelo bairro, comprar flores. Domingo de manhã, outro dia espetacular, em companhia de Danuza no jornal durante o café e mais informações sobre a Bienal. Matutei: qual a importância de me deslocar para o outro lado da cidade para uma palestra já que eu ainda não tinha terminado meus deveres e precisava descansar mais? Empilhei os jornais da semana para a coleta do lixo e escapou da mão um caderno de sexta-feira, que ao cair, abriu na página onde estavva o mapa da Bienal.
 
Outro instante daqueles: ela, Samantha, uma das mulheres mais admiráveis e influentes do nosso tempo, jornalista, especialista em Relações Internacionais por Harvard e ex-assessora de Barack Obama estaria lá para falar do legado deixado por um dos diplomatas mais pragmáticos e brilhantes que a Onu já teve, Sérgio.
 
Ainda resisti, também não teria graça em ir para a Bienal e voltar sem livros que eu nao voltaria a comprar até terminar de ler os dois que eu tinha deixado pela metade. Fui almoçar, achando que eu já tinha desistido da idéia, mas chegando em casa, outro instante – nem os passarinhos da janela eu ouvi – me perguntei: "O que estou fazendo aqui ainda? Vou lá."
 
Foi muito fácil chegar e confesso que ao atravessar a bilheteria, chorei de alegria. Nada demais para quem vê o lugar, pode parecer um shopping maior que de costume, ou mais uma feira e pronto. Mas estar ali, sentindo aquele cheiro de livros dava uma emoção que talvez sentisse um adulto que tivesse visto o mar pela primeira vez. Eu nunca tinha estado numa Bienal – sempre banalizei e preferi continuar indo às livrarias como de costume – e ainda não sabia porque, senti tudo aquilo. Fui flutuando até o stand da editora e comprei o livro. Andando com ele abraçada fui até o salão onde ela estaria, peguei o tradutor e sentei, entusiasmadíssima.
 
Logo ela entrou, uma moça magra, de camiseta e calça jeans, cabelos presos, simples, agradável. Quando falou, aquela voz extremamente firme, palavras ditas de forma pausada, vindas das entranhas de quem vive o que pensa e procura aprender para pensar melhor – com a vida, com as pessoas e com os livros – e vindas de uma discernimento elevado, cheio de conhecimento sobre a história dos conflitos mundiais que ameaçam e violentam os direitos humanos. Fiquei enlouquecida de prazer à medida que eu entendia algumas idéias, que caiam na minha alma com delícia – era alguém que, além de todo o conhecimento que compartilhava, atestava ser possível mudar o mundo – fosse ele particular ou político -, com um idealismo pragmático, bem orientado às ações de campo, pois de nada adianta só pensar, falar e escrever como ocorre com funcionários da ONU que cumprim rotinas burocráticas no escritório de Nova York. Ações de campo totalmente baseadas no respeito ao indíviduo em sua totalidade, na análise minuciosa dos cenários, interesses em jogo, reinvindicações, perigos e consequências das ações possíveis. "Sérgio costumava dizer que o medo é péssimo conselheiro – ele inflama conflitos e distancia as melhores soluções da realidade." O exemplo que ele deixou ao conduzir as negociações em que participou não servia somente de exemplo para os estadistas e intelectuais de partidos polítcos e representantes em câmeras legislativas ou instituições não-governamentais. Servia também para nós, cidadãos comuns e não apenas para o exercício dos nossos deveres e direitos civis, mas também da nossa vida cotidiana.
 
Isso era claro ao ver os depoimentos da esposa dele, presente, respondendo a perguntas, também ex-funcionária da ONU e especialista em Relações Internacionais, agora professora na PUC do Rio, muito cuidadosa e muito emocionada em falar novamente do homem que amou e admira até hoje. Também ficou claro que o exemplo de Vieira de Mello pode permanecer inaudível a polítcos como o senandor Eduardo Suplicy que se levantou para fazer um longo comentário da sua admiração pelo diplomata pedindo que ela encaminhe um convite a Barack Obama de vir ao Brasil visitá-lo. Será que ele se lembrava que ela não era mais sua assessora? Gosto do trabalho do senador Suplicy, mas fiquei desapontada com o discurso dele, depois de uma palestra tão brilhante. Era o discurso de um político mediano, envaidecido por estar ali, falando com ela.
 
Fui até ela depois com o meu livro e a agradeci pelo trabalho que tinha feito; seus olhos brilhantes e sorridentes e sua acolhida me deixaram totalmente à vontade, aquele era mais um instante. Consegui dizer que nós brasileiros precisavamos conhecer melhor o trabalho dele e que era maravilhoso que alguém tivesse feito algo mais do que um enterro com honrarias; ela continuou sorrindo, comentou que sua vida é um exemplo maravilhoso, que eu terminaria por admirar quando lesse o livro, falando, enfim, como se ela não tivesse tido o trabalho de pesquisa. "Very nice to meet you", disse me entregando o livro autografado.
 
Continuei flutuando e não tinha sentido passear por ali pra ver outras coisas, pois meu presente tinha sido dado e eu estava completamente satisfeita. Quando abri o livro para rever melhor seu autógrafo, vi que ela teve a delicadeza de escrever o meu nome certo, dizendo: "Para… com Esperança."
 
A palavrinha era a chave de ouro para encerrar a noite e ela me soou como mais uma bênção dos céus para continuar apostando no Bem e acreditando no Melhor, que não era tolice ser otimista e confiante e sim, ato mínimo que uma pessoa deve fazer por si mesma, em razão dos seus direitos básicos à vida. E isso é uma grande lição pra nós pararmos de sabotar a nossa própria vida com sentimentos e pensamentos que não são uma " ‘inteligente’ constatação madura de que o mundo é cruel, as pessoas são podres, a realidade é dura e que sonhos são coisas de crianças, velhos, desocupados, ricos ou lunáticos". Estes sentimoentos e pensamentos desencadeiam ações idem, pois funcionam na verdade como bombas presas ao corpo que nós mesmos detonamos, espalhando destruição à nossa volta. 
 
É dramático dizer isso, mas seríamos menos dramáticos se simplesmente nos empenhássemos em salvar a nossa própria vida da descrença por dias melhores, lutando confiante por eles. Pensei nos refugiados, vítimas de guerra, atentados, terrorismo, fome e da inércia dos políticos que não cuidam da educação e da saúde. Depois pensei em mim. A dignidade fazia sentido, pois é respeitabilidade, algo com o qual não temos o devido cuidado e mostra, muitas vezes total falta de amor.
 
Ter uma esperança contra toda a possibilidade de esperança faz toda a diferença, que faz acontecer toda a mudança que se quer.
 
  
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